sexta-feira, 23 de abril de 2010

Blues da eleição

Ser brasileiro é fundamentalmente nascer privado de algo vital, alguma coisa difícil de definir mas importante especialmente por sua ausência. É como receber de herança uma mansão em outra cidade e, ao chegar lá, descobrir que uma enchente varreu a casa do mapa e deixou apenas um terreno elameado: você nunca viu e de fato, nem teve a mansão, não sabe o que perdeu mas sabe que, como sempre no seu caso, deu merda.

Mesmo comparando com os outros países das Américas, a nossa identidade nacional não tem pegada. A cidadania brasileira é uma condição temporária, esperamos, para ser sutilmente deixada de lado até descobrirmos uma descendência mais interessante (italiana, espanhola, inglesa, etc.) ou nos tornarmos ricos, que são os verdadeiros cidadãos do mundo e podem escolher uma cultura por semana para imitar.

Tudo isso tem um motivo, claro. O Brasil exige pouco diretamente de cada um de nós. Não nos envia recrutados à força para guerras de conquista. Não confisca nosso rico dinheirinho para fazer palácios de ditador iraquiano. Não condena minorias étnicas a serem cidadãos de segunda classe. Não faz nada de muito dramático: é um marido ausente, sempre no bar, que aparece de vez em quando para um chamego e levar o dinheiro da sinuca, mas não o que estapeia a cara-metade nem rouba as jóias da família.

Por outro lado, nós também não exigimos muito dele. Não insistimos em receber um nível e qualidade de serviços públicos à altura dos impostos que pagamos; preferimos ficar miando e querendo não pagar imposto algum, uma alternativa válida mas notóriamente preguiçosa. Cada brasileiro pode apontar para um mapa e em segundos apontar pelo menos 60% do país que, a seu ver, não contribui em nada e nunca vai fazê-lo, meros sanguessugas (ao contrário do seu próprio e augusto empreendedorismo). O separatismo só não é um problema aqui graças, em grande parte, à nossa preguiça. Quando não se pode cancelar defeitos com virtudes, defeitos podem anular defeitos, felizmente.

Nossa relação com a democracia é o melhor exemplo. Ela é inconstante e possui expectativas baixíssimas. A cada quatro anos somos chamados às urnas para salvar o mundo (pois certamente uma vitória do oponente vai precipitar um cataclisma que fará o filme-catástrofe 2012 parecer um conto de natal), e um mês depois já estamos perfeitamente desligados do nosso destino político. Caso nosso lado vença, esquecemos da política pois sabemos que ela está em mãos que podem não ser boas, mas são aceitáveis. Caso o outro vença, melhor nem acompanhar para não ficar frustrado e esperar um escândalo para pedir, por tabela, impeachments e afins.

Faz sentido: o amor pela democracia é, no final das contas, um amor à sistemas. E quem consegue se empolgar por algo tão frio e sem vida? (Exceto, claro, nosso amigos contadores). Sem uma identificação profunda do indivíduo com o sistema, isso é impossível. É como sortear um time de críquete da dinarmarca e pedir para um carioca torcer por ele com a mesma paixão que dedica ao Flamengo.

O problema, portanto, é o sistema. As engrenagens de um país não podem, por definição, ser neutras. Elas giram em favor de alguém e usam a energia fornecida por outro alguém. Não existe nada mais perigoso ou complicado do que mudar ou reformar o sistema, como Niccoló Maquiavel já definiu: os seus defensores estão sempre em posições de poder, se beneficiando dele ao longo de gerações, e os beneficiados pela mudança são sempre fracos e desorganizados. É uma equação que tende à estagnação. Felizmente, a raça humana exige, de tempos em tempos, momentos de ruptura. Quando as instituições caducam, resetamos os sitema por bem ou por mal, e de vez em quando, o que aparece é algo...admirável.

Essa é a reforma que mais precisamos no Brasil: uma consciência de propósito, um projeto de país que todos, nos escritórios da Faria lima até os vilarejos do Acre (caso este exista de fato) possam reconhecer, senão apoiar. Todas as outras só virão como consequência. Países não se desenvolvem graças a heróis e presidentes: crescem e melhoram apesar deles.

Quando nos olharmos no espelho, dermos um par de tapas em nossas próprias caras e trabalharmos para melhorar processos e valorizar nosso passe, quando pudermos dizer que vamos crescer sempre, pouco importanto o presidente ser de direita ou esquerda, analfabeto ou PhD, santo ou demônio, deixaremos de ser o eterno país do futuro e iremos merecer o presente.

O que for da vida não nos deterá.
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